Alagamentos nas cidades brasileiras são problemas urgentes — e têm solução

Escrito por Marília Matoso  | Publicado em  ArchDaily

Obras em Balneário Camboriú. Fonte: Prefeitura de Balneário (Reprodução)

O Brasil é atualmente o sexto país do mundo que mais sofre com catástrofes climáticas, segundo a Organização das Nações Unidas. O principal problema são os alagamentos e inundações porque trazem consigo vendavais, deslizamentos de terra e enxurradas. Uma em cada três tragédias no Brasil está nesta categoria – foram mais de 10 mil registros oficiais entre 1991 e 2010.

Enchentes e alagamentos são um fenômenos naturais que ocorrem quando a água que corre em um rio atinge o limite máximo do leito menor e passa para o leito maior, mantendo-se ainda dentro do canal ou quando o nível do mar se eleva em cidades litorâneas. Embora se trate de uma ocorrência natural, quando há o incremento da vazão em um curso d’água, as enchentes podem se intensificar.

Essa intensificação ocorre como consequência das ações do ser humano sobre a natureza, trazendo assim uma série de danos à sociedade. O principal motivo porque as enchentes são uma preocupação no Brasil é a forma como decorreram o processo de urbanização no país e, consequentemente, a expansão das cidades.

O crescimento das cidades brasileiras  implicou profundas transformações no uso da terra. A falta de planejamento urbano e intervenções inadequadas ou feitas de forma incorreta no espaço intensificaram os alagamentos e os efeitos prejudiciais das enchentes.

Deslizamentos provocados pela chuva em junho de 2022 na Grande Recife. Fonte: Pedro Alves/G1

Segundo Mila Avellar Montezuma, arquiteta, estudante de mestrado do Water Science and Engineering com foco em Sustainable Urban Waters Management and Climate Resilient Cities no UNESCO-IHE e também pesquisadora do Fórum Internacional – Recife Exchange Netherlands (2020-2023) cujo tema é “Águas como Patrimônio: perspectivas e estratégias sobre a elevação do nível do mar no Recife e Dordrecht”, os problemas das enchentes podem ser vistos também como oportunidades: seremos estimulados a criar um novo futuro focado na melhoria da qualidade da vida urbana.

A arquiteta que viveu parte da sua vida em Recife, cidade brasileira que foi considerada o 16º hotspot climático (o que significa que é uma das cidades mais vulneráveis as mudanças climáticas, segundo IPCC, 2014) iniciou seus estudos sobre as águas ainda no período estudantil onde apressentou na sua tese final de graduação o trabalho: “Membrana Anfíbia: Estratégias Urbanas para a Cidade Anfíbia 16º hotspot do planeta – Recife” (2019)

Conversamos com ela sobre as possibilidades e desafios enfrentados no Brasil e no mundo nos próximos anos em relação às mudanças climáticas e às soluções relacionadas ao fluxo das águas nas grandes cidades.

Por que pensar em Recife

Recentemente, Recife enfrentou uma das maiores tragédias climáticas de sua história onde mais de 70 mil pessoas ficaram desabrigadas e outras 128 morreram.Os principais problemas que acarretam esse tipo de acontecimento é o fato da capital ser uma cidade costeira, com uma alta densidade por km2 e ter a característica de ter seu patrimônio cultural e ambiental ameaçado, pois Recife é a primeira capital nacional a completar 500 anos.

Essa posição a coloca em risco por fatores como a elevaçao do nível do mar e o aumento da frequência de chuvas mais intensas (de maiores períodos de retorno). Dentro de no máximo 80 anos boa parte do Recife pode sumir da paisagem inundada pelo avanço do oceano.

Dinâmica das águas no Recife. Fonte: Milla Avellar Montezuma

De acordo com Mila, o modelo de planejamento da Cidade, agravado nas últimas décadas, negligenciou o clima, no qual o território passou a ser considerado 100% urbano. Nesse sentido, o crescimento urbano deu-se de “costas” para seus cursos hídricos, com elevada densidade construtiva, carência de zonas de amortecimento – ou buffers urbanos, como florestas, parques e praças -, alta taxa de solo impermeável, sistemas urbanos majoritariamente artificais e desconectados com o desafio de se projetar com a natureza.

A cidade é um campo de estudos para o problema dos alagamentos já que os tipos de inundações são oriundas de pluvial, fluvial, e costeiro, ou até mesmo uma combinação destes três, denominado evento composto.

E se a curto prazo (5 a 10 anos) esses problemas não forem resolvidos, além da trágica incontabilidade de perdas humanas, pode-se converter boa parte dos moradores em “refugiados climáticos” devido a consequencias como: submersão de boa parte da cidade, agravamento da erosão costeira, salinizaçao do delta, inundação das infraestruturas urbanas, danos da qualidade de água potável e danificação do patrimônio histórico e artístico.

A engorda do mar e as muralhas: soluções antigas?

Algumas cidades no Brasil e no mundo tem adotado a solução da engorda do mar ou beach nourishment (ou “engordamento de praia”) que é um processo de posicionamento de sedimentos em uma praia ou costa, alargando assim sua extensão. Recentemente Balneário Camboriú adotou essa estratégia, numa obra que tem por objetivo passar a faixa de areia de 25 metros, em média, para 70 metros. Segundo a prefeitura, o trabalho vai permitir, além da proteção da orla contra o avanço das marés, a criação de espaços privilegiados para os moradores e os visitantes.

 

Simulação de como o aumento do nível do mar pode afetar as cidades brasileiras. Foto © Climate Central

Seria essa uma solução possível para cidades litorâneas?

São medidas que tem um tempo de vida útil e precisam ser executadas e mantidas corretamente para aumentar sua durabilidade.Por outro lado, embora a engorda possa fornecer proteção e restaurar o habitat anterior, há alguns impactos negativos nos processos naturais. Dentre eles, pode-se destacar a possível agressão à fauna bentônica. – afirmou Mila.

Portanto, é preciso estudar caso a caso sabendo que  não existem soluções genéricas, mas que precisam ser analisadas individualmente, onde a rigor cada ecossistema é distinto.

Outra solução bastante conhecida é a das muralharas marítimas como as de Afsluitdijk em Roterdãconstruídas há 80 anos atrás. Para conter a fúria do Mar do Norte, os holandeses construíram uma barreira de 32 quilômetros que cortam as águas. Seria essa solução depois de tanto tempo ainda viável em termos estruturais, sociais e econômicos?

Segundo Mila, esse é um mecanismo mais voltado a proteção do que à adaptação do sistema:

Hoje, o debate no país está mais voltado a medidas adaptativas as águas, ao invés de protetivas (evitativas). Tipicamente, necessita-se um tempo hábil de concepção, pesquisa, projeto, execução e manutenção. Entretanto, essa equação exige muitas vezes uma ordem temporal de 50 anos para ser executada e, com a intesificação e o aceleramento do aquecimento global, como é dito aqui: não temos mais esse tempo.

Alagamentos e Rooftops Verdes

Em países como Bangkok, com problemas climáticos muito parecidos com o Brasil, projetos como rooftops verdes e parques urbanos que absorvem as águas vem fazendo sucesso sobretudo nos projetos da arquiteta tailandesa Kotchakorn Voraakhom, cuja fazenda urbana da Universidade de Thamasaat com 22mil m2 é o maior telhado urbano da Ásia.

Inspirado pela engenhosidade local e práticas agrícolas tradicionais, a fazenda urbana de Thammasat forma um gramado de detenção que desacelera, absorve e armazena água da chuva enquanto a usa para cultivar alimentos. Qualquer escoamento é filtrado através de cada camada de solo e posteriormente salvo em quatro lagoas de retenção, que podem coletar a água até 11.718 metros cúbicos para irrigação do telhado e uso futuro.

Fazenda urbana em Bangkok. Fonte: World Landscape Architects

Estes rooftops são telhados ecológicos que consistem em dispor camadas de vegetação, substrato, filtro e drenagem sob uma cobertura convencional ou lajes impermeabilizadas. Tais estratégias permitem a captação e reutilização da água da chuva em áreas urbanas. A idéia é contribuir para deixar as cidades mais “estáveis” climaticamente, essa estretégia funciona para alagamentos e secas: servindo como um buffer para tempestades e reduz o estresse térmico no período seco. Assim, essa técnica também contribui para a redução da vazão d’água no sistema de drenagem urbana por causar o atraso do volume hídrico na tubulação (ou até evitando-o) reduzindo assim a probabilidade e intensidade de alagamento superficial.

Para a arquiteta, em novas construções, a técnica é altamente aplicável, precisando de manutenção para manter sua performance de armazenamento d’água: “Entretanto, o Recife, assim como a maioria das cidades brasileiras, são densamente edificadas, ou seja, com baixa disponibilidade de espaços livres. Portanto o projeto deve-se considerar um cenário em que sua aplicação seja realizada em edicifações existentes, considerando uma inclinação máxima da coberta existente, resistência da estrutura base e a impermeabilização eficiente”. 

Membranas Anfíbias

Nos estudos do Recife Exchange Netherlands , Mila e equipe aprofundaram o projeto Membrana Anfíbia e Cidade-Parque que segue em direção de investigar e desenvolver um sistema filtrante de Parques Marinhos para procurar responder aos desafios das mudanças climáticas que exige uma reinvenção da cidade, levando em consideração o caso de Recife.

O sistema se materializaria num amplo Parque Ecossistêmico na frente oceânica da cidade, ou seja, no mar. Na busca de transcender uma infraestrutura de contenção puramente técnica, a ideia é que seja uma linha ecossistêmica sensível – sociocultural e ambiental – tal qual é o arrecife, berçário natural de onde se originou o nome cidade. Esse conceito membrana se acomodaria no relevo marinho e seria formada a partir de processos antrópicos (de intervenção humana) mas, também, naturais (a exemplo das correntes marinhas que organicamente podem ajudar a moldar o novo território). A membrana foi pensada para se desdobrar num sistema de três parques articulados.

Masterplan do Recife, onde mar e continente funcionam ambientalmente como a “Membrana Anfíbia” de contenção. Fonte: Mila Avellar Montezuma

  1. O primeiro é o Parque Tecnológico-Energético, situado entre 1.000 a 1.500 metros da costa, voltado à geração de energias renováveis: maremotriz, eólica e fotovoltaica. Um objetivo também relevante desta primeira “camada” de proteção é contribuir para a viabilidade econômica da iniciativa.
  2. O segundo é um Parque de Ilhas Flutuantes, localizado entre 500 a 1.000 metros da praia, cuja principal função é a de amortecimento do principal intemperismo físico do sistema: a erosão direta provocada pelo impacto das ondas marinhas (“turbinadas”, inclusive, pela elevação do nível do oceano). É uma região que tem o papel de resguardo e regeneração da vida selvagem, com restabelecimento da vegetação de restingas e coqueirais. O objetivo principal, portanto, desta segunda “camada” de proteção é o resgate da biodiversidade.
  3. O terceiro é um Parque de Piscinas Filtrantes, a até 500 metros da costa – raio de influência da mobilidade ativa a pé. Seus principais objetivos são a criação de espaço público de qualidade e a purificação das águas, temperando diretamente sua qualidade e controlando o nível das marés. Haverá neste parque específico o restabelecimento da vegetação de restinga, ecossistema hoje ameaçado na cidade, dando início ao ecossistema de transição restinga-mangue, além de canais e coqueirais.

Os três Parques Temáticos do Projeto Membrana Anfíbia Fonte: Mila AvellarMontezuma

Para todas as soluções discutidas acima, um Centro de Excelência em Emergencia Climáticas investindo massivamente em Pesquisa Desenvolvimento e Inovação, e incorporando práticas transdisciplinares de Ativação urbana é essencial nas cidades brasileiras que enfrentam problemas de alagamento, litorâneas ou não.

Atualmente, a provocação é de se enfrentar os alagamentos (bem como as ações da emergências climáticas) como um problema de curto-prazo. Assim, a sociedade civil e autoridades precisam se mobilizar e compreender que são parte do problema, e consequentemente também podem ser parte da solução.

Via Tabulla.