Incorporando perspectivas de gênero por meio do processo participativo de projeto: três exemplos ao redor do mundo
Por Camilla Ghisleni | Via ArchDaily
Imagem Cortesia da Community Design Agency. Projeto de Redesenvolvimento da Favela de Sanjaynagar - Equipe técnica reunida com membros do Comitê de Favela.
O tempo em que o Modulor – homem perfeito de Le Corbusier – era o único que "poderia" ocupar nossas cidades e arquiteturas ficou no passado. Há algumas décadas, constatou-se que os ambientes estavam sendo criados como uma representação ideológica que não refletia a demanda real e toda a sua diversidade de classes sociais, gênero, cores, faixas etárias, orientação sexual, entre outros. Planejamentos e projetos disfarçados de uma concepção “neutra”, mas que na verdade reproduzem o olhar de um homem branco de classe média. Nesse sentido, chegou o momento em que a cidade deveria deixar de ser organizada a partir dessa experiência errônea de uma apropriação universal e materializar em seus espaços as necessidades particulares de cada cidadão.
Entretanto, a incorporação da perspectiva de gênero nos projetos de diferentes escalas, apesar de latente em estudos teóricos e ensaios práticos, ainda precisa trilhar um longo caminho até que as cidades deixem de reproduzir essas relações tão intrínsecas de exploração e de dominação patriarcal, capitalista e racista. O que torna cada vez mais necessária a ideia de elaborar diretrizes que permitam orientar políticas públicas, órgãos e instituições em relação à superação das assimetrias de gênero, principalmente quando se trata de projetos urbanos. Uma transversalidade fundamental para o aumento da eficácia das políticas públicas, assegurando uma governabilidade mais democrática e inclusiva em relação a todos os gêneros e orientações sexuais.
Sendo assim, para transformar os espaços de opressão e invisibilidade dentro da cidade é necessário um novo jeito de fazer política pública que, entre outras ações, implica esforços para entender as necessidades e preferências dos cidadãos e cidadãs, moldando políticas e desenvolvendo estratégias com o envolvimento da própria população. Esse processo participativo é fundamental pois oferece insights sobre a interação entre vulnerabilidade, gênero e planejamento urbano, aproximando os órgãos das diferentes necessidades dos habitantes, assim como, suas dificuldades e inseguranças diante da cidade, tornando-se uma ferramenta-chave para dar voz e vez a uma população antes afastada das decisões políticas e urbanas.
Conheça a seguir três iniciativas que procuraram incorporar a perspectiva de gênero por meio de processos participativos de projeto.
Col.lectiu Punt 6 / Barcelona
O grupo Col.lectiu Punt 6, localizado em Barcelona, é um exemplo interessante de iniciativa que pensa a arquitetura e o planejamento urbano sob a perspectiva de gênero, tendo em vista a participação da comunidade como principal aspecto da construção social da cidade. De acordo com o grupo, não há uma fórmula para realizar projetos nesse sentido, basta estar aberto ao diálogo e saber se adaptar a todos os contextos e cidades. No início, em 2005, grande parte das reflexões do coletivo se concentravam no debate sobre a segurança das mulheres nas cidades o que, mais tarde, passaria a abranger cinco qualidades urbanas: proximidade, diversidade, autonomia, vitalidade e a participação nos processos de tomada de decisões urbanas. São 10 anos de experiência em processos de planejamento participativo com enfoque feminista e as metodologias do coletivo trabalham com a análise espacial de gênero, como a utilização de mapas corporais que auxiliam na compreensão de como o espaço público atua e impacta nos corpos femininos, racializados e não binários. Além de mapeamentos coletivos que integram a perspectiva de gênero com a participação social vinculados a desenhos sobrepostos na cidade.
O grupo disponibiliza ainda as metodologias desenvolvidas na sua atuação empírica em seu site por meio de uma série de manuais e guias de atuação como, por exemplo, diagnósticos participativos de avaliação do espaço urbano e da gestão urbana com a comunidade local; marchas exploratórias de reconhecimento e análise coletiva do bairro; cartografias, mapas coletivos, perceptivos, corporais e de mobilidade cotidiana; ferramentas participativas de análise da vida cotidiana, vídeos participativos (narrativas coletivas sobre o bairro); etc. As impressões e dados coletados são uma ferramenta importante que servem como diretrizes para intervenções de melhoria urbana promovidas independentemente ou pelo governo local.
@Col.lectiu Punt 6 - Formación en Técnicas Participativas para el diagnóstico del entorno urbano - Barcelona - https://www.punt6.org/
@Col.lectiu Punt 6 - Proceso participativo del Plan de Movilidad Urbana Sostenible de Vilassar de Dalt - https://www.punt6.org/
Safetipin / Nova Deli
Do outro lado do mundo, em Nova Deli, Índia, um aplicativo chamado Safetipin tem sido incorporado pelos órgãos públicos para tornar a cidade mais segura para as mulheres. Desenvolvido em 2013, após um terrível estupro coletivo que ocorreu dentro de um ônibus o qual gerou inúmeros protestos, o aplicativo móvel e a plataforma online Safetipin coleta informações sobre espaços públicos por meio de uma auditoria de segurança que pode ser feita por qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo. Esses dados são compartilhados com outros usuários do Safetipin e com as principais partes interessadas urbanas, como departamentos de planejamento e a polícia, para fornecer insumos que melhoram as condições de segurança. No centro do Safetipin está a auditoria de segurança que mede oito parâmetros sobre infraestrutura física e uso social de espaços públicos. Estes incluem iluminação, abertura, visibilidade ou “olhos na rua”, presença de segurança, estado do percurso pedonal, disponibilidade de transportes públicos, bem como a presença de pessoas e, especificamente, mulheres, nas ruas.
Hoje em dia existem mais de 35.000 pontos de auditoria de segurança em toda a cidade, o que também fornece dados longitudinais sobre como a infraestrutura da cidade se desenvolveu e, em alguns casos, se deteriorou. Como um exemplo da eficácia do sistema, em 2016 foram apontadas mais de 7.000 manchas escuras na cidade. Ao longo de um ano, a iluminação em vários desses pontos escuros foi corrigida, e a própria equipe Safetipin visitou as áreas junto com os engenheiros do município para confirmar que a iluminação havia sido melhorada e, posteriormente, foram feitas novamente auditorias de segurança para verificar a eficácia da mudança. Em 2018, o governo de Deli abordou a Safetipin para fazer outra rodada de mapeamento de toda a cidade a fim de medir não apenas a iluminação, mas também focar em espaços públicos específicos, como parques, banheiros públicos, mercados, locais turísticos procurando, através da participação pública, tornar os ambientes mais seguros e inclusivos, incentivando as pessoas, principalmente as mulheres, a utilizá-los.
@Safetipin - https://safetipin.com/
@Safetipin - https://safetipin.com/
Women’s Office / Viena
Falar sobre arquitetura e urbanismo sob a perspectiva de gênero e não citar o pioneiro exemplo liderado por Eva Kail no início dos anos 90 seria impossível. Na vanguarda, Viena criou em 1992, a “Oficina das Mulheres” (Women’s Office) e, posteriormente, em 1998, o Departamento de Gênero que assumia como modelo de política pública as necessidades das mulheres nas cidades.
Viena realizou mais de 60 iniciativas que usaram a integração de gênero, incluindo projetos de iluminação pública, alargamento de calçadas, assentos adicionais, habitações sociais projetadas por e para mulheres e melhoria da segurança de atalhos e becos com a adição de espelhos. Para isso, o primeiro passo essencial foi entender como as necessidades urbanas das mulheres diferem das dos homens por meio da coleta de dados sensíveis ao gênero. Em 1991, por exemplo, Viena decidiu avaliar a porcentagem de residentes do sexo masculino e feminino usando determinados tipos de transporte. A análise, feita por meio de entrevistas e workshops com a população, encontrou diferenças marcantes nos padrões de uso do transporte. Os homens usam carros e bicicletas com mais frequência, enquanto as mulheres são mais pedestres e usuárias de transporte público. Nesse mesmo ano, Kail foi fundamental na organização de uma exposição de fotografia, 'Who Owns Public Space – Women's Everyday Life in the City'. A exposição contou com a participação de diferentes mulheres as quais tiveram seu cotidiano documentado mostrando claramente que a segurança e a mobilidade urbana eram prioridades reais.
A pesquisa levou a cidade a reavaliar sua abordagem de planejamento urbano de longo prazo. As autoridades começaram a se concentrar na acessibilidade, segurança e facilidade de deslocamento. Além disso, um dos resultados mais expressivos da iniciativa foi a construção do Frauen-Werk-Stadt (Mulheres-Trabalho-Cidade), um complexo de 357 unidades feito por mulheres e concluído em 1997, caracterizado por uma perspectiva feminina em todos os níveis: desde espaço para armazenamento de carrinhos de bebê em todos os andares e amplas escadarias até layouts flexíveis e altura limitada do edifício, suficiente para garantir os “olhos na rua”.
Eva Kail. Image by flirck Margarete Schuette-Lihotzky Raum photo Bettina Frenzelunder license Attribution-NonCommercial-ShareAlike 2.0 Generic (CC BY-NC-SA 2.0).
Frauen Werk Stadt. Image by Dieter Henkel under license CC BY-NC-SA 4.0.
Seja por meio de pesquisas qualitativas ou quantitativas, seja por longas entrevistas gravadas, pela elaboração de mapas corporais, desenhos de intepretação ou aliando a tecnologia com aplicativos e plataformas, ao percorrer esses exemplos, é possível perceber que o processo participativo de projeto pode se desenvolver de diferentes maneiras. Porém, independentemente do método, o ganho na qualidade urbana é extremamente significativo pois, finalmente, quem de fato usa a cidade é quem a está desenhando.
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