Afinal, para que servem as calçadas?
Escrito por Adriana Levisky via ArchDaily
Imagem: Edson Lopes Jr/SECOM
Passados 21 anos da aprovação da lei federal do Estatuto da Cidade, que regulamentou o capítulo de “Política Urbana” da Constituição Brasileira, e resultou na elaboração de diversos planos diretores para as cidades do século XXI com mais de 20 mil habitantes e na oportunidade de revisão de uma série deles, parece-me oportuno despertar nossos radares sensoriais para um tema de extrema relevância para todas as cidades e que vimos colecionando enorme dificuldade em lidar: nossas calçadas!
Refiro-me a diversos aspectos relativos a seu uso e finalidade, seus mecanismos regulatórios, sua manutenção e seu desenho... Vamos a eles!
Não é de hoje que as cidades contemporâneas ao redor do mundo vêm voltando sua atenção e revisitando seus territórios com foco na mobilidade ativa, ou seja, aquela que parte dos deslocamentos das pessoas através de meios não motorizados, especialmente o pedestre, a bicicleta, o patinete, como estratégia de requalificação da vida urbana, buscando olhar mais para as necessidades das pessoas considerando toda a diversidade de demandas que isto traz; associando o deslocamento às finalidades de interligar origem e destino em distâncias curtas, acessíveis e agradáveis; ofertando, a partir do passeio, não só a ligação origem destino mas também a oportunidade do lazer, ócio, encontro, entretenimento.
Sobre a diversidade de demandas, refiro-me à diversidade de condições de locomoção que devem ser consideradas, visando garantir a mobilidade de crianças, idosos, pessoas carregando carrinhos ou bebês de colo, pessoas com restrição temporária ou permanente de locomoção seja por restrições motoras, visuais ou auditivas.
E, depois, às inúmeras finalidades que a calçada deve oferecer à vida urbana, permitindo o ágil e apressado deslocamento por exemplo entre casa e trabalho, mas também o suave, prazeroso caminhar capaz de oferecer surpresas, pontos de encontro, oferta de sombras, belas visuais, deliciosos aromas, um banco para uma boa leitura, um sorvete, uma livraria, uma pelada, uma boa exposição, um boteco no caminho…
Além deste, muitos outros percursos simultaneamente passam pela minha cabeça, podendo ser oferecidos por uma cidade rica em opções de deslocamentos e vocações, capazes de dinamizar a economia, a arte, o vínculo, a saúde, a boa convivência…
Tais percursos, nada mais nada menos, tornam-se garantidos simplesmente através das calçadas! Calçadas ao longo de grandes avenidas, bulevares, calçadões, ocupações irregulares, bairros mais distantes e ainda miolos de quadra, cruzando empreendimentos privados que ofereçam a condição de fruição pública aos transeuntes.
Mudando de abordagem, vamos voltar o olhar para os mecanismos regulatórios que regem as calçadas. A intenção primeira de focarmos neste assunto está no fato de acreditar que nossas legislações são um depoimento explícito e genuíno da forma como abordamos um determinado tema. Refiro-me a aspectos profundos ligados à nossa mentalidade, ou ainda à forma de construirmos nosso olhar cultural, com “C” maiúsculo, sobre as coisas.
Apesar de termos avançado muito nos últimos anos, principalmente trazendo para o campo da materialidade espacial, regras relativas: ao dimensionamento mínimo das faixas livres de circulação, das áreas de serviços e arborização; às possibilidades de pavimentação, sinalização, declividade, apoiadas especialmente nos avanços obtidos a partir da Lei Brasileira de Inclusão e da Norma Brasileira de Acessibilidade, trazendo à luz as diretrizes do desenho universal, curiosa e infelizmente, vemos estas regras atreladas a modelos equivocados e historicamente consolidados, há décadas, relacionados sobretudo à manutenção das calçadas e evidentemente aos recursos vinculados a ela.
No quesito manutenção, gostaria de chamar a atenção para o tema da responsabilidade sobre este espaço público. Ou seja, quem é responsável pela manutenção do passeio público?
Pois é… em diversas cidades brasileiras, o responsável pela manutenção do passeio público, ou melhor, pela parcela do passeio público, estritamente fronteiriça ao alinhamento do lote dominial, é seu proprietário.
Neste sentido, qualquer reparo, intervenção, modernização, adaptação, situado na frente de um lote é de sua responsabilidade. Responsabilidade esta financeira e civil, sujeita inclusive a multas provenientes do poder público àqueles responsáveis por eventuais maus tratos de seu quinhão de calçada!
É aí onde mora a problemática em torno dos passeios públicos… Tratando as calçadas de forma extremamente fragmentada e com foco em regras de manutenção diluída entre muitos e sem nenhuma governança que garanta a integração da infinidade de intervenções realizadas a qualquer tempo!
Foto de NAMUBI, via Unsplash
Adicionada às questões da finalidade e da responsabilidade pela manutenção, vamos incluir o desenho das calçadas, considerando seus aspectos técnicos, funcionais e paisagísticos. Não se deveria em hipótese alguma tolerar a colcha de retalhos que são de fato nossas calçadas, compostas por uma sucessão de soluções diversas, que apesar de poderem atender à legislação da vez, não garantem continuidade, identidade e segurança ao passeio, geralmente entremeado de pisos, paginações e larguras desconexas, colocando em risco a segurança das pessoas sujeitas a quedas e uma enormidade de acidentes, motivo este de alto custo à saúde pública. Esta evidência é uma crua constatação da ausência efetiva de uma política de mobilidade ativa em nossas cidades…
Mas por quê?
Fato é que reconhecermos e darmos valor cultural, social, histórico e econômico aos nossos espaços públicos parecem ser o “x” da questão. Considerarmos o espaço público, dentre eles, nossas calçadas, como um ATIVO socioeconômico, um patrimônio da cidade, não está no DNA dos brasileiros…
Qual o resultado disto?
As evidências fáticas, assim como aquelas provenientes das diversas legislações que regulamentam o passeio público urbano nas cidades brasileiras, escancaram a clara dificuldade de reconhecer a calçada como uma política pública essencial para o acolhimento, usufruto e garantia dos deslocamentos e encontros seguros e saudáveis para as pessoas em suas cidades. Em outras palavras, podemos constatar a ausência de políticas que zelem pela qualidade estratégica do passeio público para as pessoas nos logradouros públicos das cidades!
Há que se considerar, a partir do Estatuto da Cidade e dos Planos Diretores Municipais, a necessidade de elaboração, nas cidades, de um Plano de Mobilidade Ativa que estabeleça e detalhe, de forma sistêmica, para além do plano cicloviário, um Plano de Caminhabilidade Urbana, incluindo não só o passeio público, mas também, de forma integrada, a fruição pública em lotes dominiais.
Em outras palavras, reconhecer, desvendar e integrar o território urbano composto por seus logradouros públicos e também por seus espaços dominiais sob a ótica do caminhar.
Partindo deste pressuposto, o desenho urbano deve atuar como ferramenta estratégica e adotar como módulo mínimo de análise a rua, podendo, ainda, se estender para um bairro ou região em virtude das características do uso e ocupação do território. Não significa que uma rua obrigatoriamente deva ter o mesmo desenho em toda sua extensão. Mas que a partir de sua função, condições e características espaciais conceitue-se o desenho adequado de seus passeios para seus transeuntes.
Pensando em tantas das nossas cidades com territórios tão consolidados, seria viável admitir a possibilidade de prever a requalificação dos seus passeios públicos?
Para refletirmos juntos a respeito deste ponto, proponho um exercício. Vamos olhar para um exemplo, bem recente, que está acontecendo na zona centro-oeste da cidade de São Paulo. Falo das velhas conhecidas de muitos, Avenida Rebouças e Rua Augusta. Em ambos os casos, o Plano Diretor de 2014 e a Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo de 2016, enquadraram os lotes lindeiros a estas vias, em um ou em ambos os lados, como Zonas de Estruturação Urbana e Zonas Centralidades.
Rua Augusta, São Paulo. Imagem: Marcos Santos/USP Imagens
Estas zonas, almejando o adensamento populacional, o uso misto, a integração público-privada e a valorização do passeio público através da exigência de doação de faixa de lote privado para alargamento de calçadas para garantir largura mínima de 5 metros, acabaram por criar uma condição extremamente nova e oportuna à renovação do passeio urbano e da experiência do pedestre no seu caminhar por estas vias.
Não é pouca coisa imaginar que uma avenida com 3,3 quilômetros como a Rebouças e uma rua com quase 3 quilômetros como a Augusta teriam condição, a partir de um território bastante consolidado, de se reinventar em seu uso e ocupação do solo e em sua paisagem. No entanto, isto vem ocorrendo nestes últimos 3 anos! Ambas as vias estão em franca transformação, com uma enormidade de demolições e construção de novos empreendimentos de uso misto e considerando os obrigatórios alargamentos do passeio público à frente de cada lote.
Lamentavelmente, a reboque de belos edifícios, por vezes com algumas soluções interessantes de fachadas ativas e fruições internas aos lotes, as calçadas, ao longo destas vias, vêm sendo sistemática e conservadoramente entregues à cidade como nossas velhas conhecidas colchas de retalhos…
Afinal…para que servem nossas calçadas?
Onde está o desenho urbano aplicado como ferramenta de estruturação das políticas de mobilidade urbana? O Plano de caminhabilidade urbana? O reconhecimento da importância estratégica dos espaços públicos para qualidade e saúde da vida urbana? A constatação do poder integrador das calçadas, praças e demais logradouros na convivência segura, saudável e inclusiva das pessoas nas cidades?
É tempo de abandonarmos certos vícios do planejamento urbano, não? E, essencialmente, perguntarmos por que tal cegueira se mantém tão enraizada em valores e nas práticas do desenvolvimento urbano?
Via Caos Planejado.